feito agulha na ponta dos dedos
- Deisiane Barbosa
- 5 de abr.
- 4 min de leitura
penso alto sobre a fúria de escrever e sobre a solidão de escrever às cegas
custei a entender a dormência que me eletrizava os dedos das mãos perigando furá-los desde dentro. custei, até entender que era dor cinco pares de agulha precipitando romper cada cabeça quase roída de dedo quase sem unha. era tamanha a agudeza como latejavam, sem que eu soubesse bem o que fazer daquilo. era uma agonia. era uma delícia. se eu atinasse para onde canalizá-la...
foi quando comecei a escrever.
demorei a entender que uma emoção sem nome, quando abatia meu corpo de ainda menina, poderia se manifestar desde a ponta sensível de cada dedo. e que então, eu poderia escrever, para ver se amansava a descarga nas extremidades. porque mil agulhas insinuavam pele afora, mas somente nas pontas é que ameaçavam transpassar, custe o que custasse. era o único caminho possível, comecei a escrever com urgência.
coisas que a princípio chamei poesia. assim, meio genérico, sem saber exato o que isso viria a ser, ou pensando intuir algo a respeito. acreditando que implicasse na quebra de versos, num texto em linhas breves, enchi páginas de diários, que hoje nem mais nas memórias da cinza existem. enchi folhas de cadernos baratos, com letras bem bordadas a canetas coloridas. e mesmo assim, ordinário, sem esmero, com toda boa vontade, alguma coisa acontecia dali. de algum abismo, ao menos, eu já me salvava.

na sexta série, imitei descaradamente uma colega que respondeu à professora, eu quando crescer quero ser uma escritora. achei aquilo uma ideia inusitada - até modesta, mas ousada. eu tinha apenas onze anos e atrelei fascínio àquela meta aparentemente tão ao alcance de minhas mãos de dedos roídos. comecei minha errância de até hoje.
comecei a ler e a prestar atenção. ler e prestar atenção. algo disso eu já sabia ser indispensável para audaciar com as letras. ser poeta seria, antes de tudo, estar atenta às afetações e disso fazer algo. foi Milton Nascimento o meu mestre-poeta primeiro, quando a escuta se abria na sede em aprender a fazer poesia. foram ele e Clarice, no começo, depois vieram outras e outros. depois veio o poder de perceber que tudo, absolutamente, o que me cercava era pleno de coisa propícia à poesia. Manoel de Barros me agulhou a venerar miudezas - eu me vi rica!
enchi mais anos de cadernos banais. fui o terror mais demandante e carente das quatro professoras de literatura que tive entre o ensino fundamental e o ensino médio. afiliei-me a cada uma delas. era tão raro estudante que desse trela a esse negócio de literatura... havia algo entre a sede e o dar de beber que ali cumpliciávamos, eu e minhas sucessivas madrinhas.
a seguir, meu primeiro vestibular me levou a estudar Licenciatura em Letras Vernáculas. se desde o princípio, conheci a solidão de escrever às cegas, tive esperanças de encontrar na academia, por meio desse curso, alguma orientação na arte de escrever. quebrei a cara. mas ainda, arejei um pouco a minha bolha e, sim, encontrei provocações valiosas.
ainda sinto agulhadas na ponta dos dedos e são elas que me movem. antes mesmo de beirarem o extremo de rasgar a carne, logo quando já sinto comichão pontiaguda percorrer a pele, tenho à mão um caderno qualquer. caderno barato mesmo, sem muita nobreza, feito com as mãos e que sirva para pinçar poesia vadia.

mas o que eu queria mesmo rascunhar nesta página que inaugura meu bloco de eteceteras… o que venho pensando e sentindo, há meses, é a saudade que tenho daquele frescor, mesmo ainda verde, da minha juventude escrevente. o frescor para a escrita, eu digo. algo que se reflete na coragem, ou na audácia, de escrever, não importa o que e quem e quando. sem o medo de errar, de fazer feio, de ser criticada ou de passar batida. escrever como quem experimenta, liberta de qualquer censura. a escrita cheia de esperanças, cheia até de muita fé, mas total destemida, sem-vergonha, sem-senhor, irreverente, assumindo as eventuais rasuras, perdoando o próprio ridículo. a escrita apesar de.
estou aqui pensando alto, para entender por onde deriva a eletricidade da ponta dos meus dedos. para identificar, quase desconfiando, o que é que tanto bloqueia a pulsão máxima de rasgá-los na página de um caderno vagabundo. por onde anda o vigor da aspirante que fui? como se restitui a fúria de afirmar a teimosia que ser uma escritora requer? uma escritora, eu disse. do gênero errado, da raça errada, no lugar errado, dizem eles por cima. mas a escrita apesar de, bato o pé novamente.
penso alto como gesto de uma partilha possível. escrevo para fazer contato e despovoar a solidão e saber como vivem e sobrevivem vocês, disto e a isso tudo? como a escrita manifesta ou afeta o corpo de cada? como andam os medos, os cansaços, e a subversão de tantos nãos? como vai a força, minhas amigas, meus amigos? contem aqui suas próprias eteceteras.

este texto foi publicado, originalmente, em meu caderno virtual de pinçar poesia e outras eteceteras...
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